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Objetivo: Voltar Para Casa

Vencer a síndrome do dever cumprido…

Martin da Costa Porto é um piloto agrícola e instrutor de voo agrícola no Uruguai. Ele tem mais de 25 anos e 12.000 horas de experiência aeroagrícola, além de 3.000 horas de instrução de voo. Atualmente, ele opera sua própria empresa aeroagrícola no Uruguai. mporto1@gmail.com

Estou voando a 160 km por hora, a três metros do solo, controlo o meu alinhamento, estou no último “tiro” de uma aplicação aérea. Agora, sigo para a aterrissagem, alinho o avião com a pista, aterrizo. Estaciono o avião, corto o motor, faço as últimas anotações, tiro a máscara e dou um grande suspiro. Fim do dia, já são oito horas da noite, tive um longo dia de voo que começou às cinco horas da manhã…

Este pequeno relato mostra apenas uma parte do que vivemos nós, pilotos agrícolas, em nossas temporadas de aplicação. Temporadas (safras, como nós as chamamos)  que são duras, estressantes e muito intensas.

É impactante o que mostra o balanço ao final de uma safra de aviação agrícola, em números. e que muitos na aviação e no público em geral desconhecem, inclusive nossas próprias famílias.

Só para exemplificar, em uma safra média (e sendo conservador), um piloto agrícola voa entre 350 a 400 horas, o equivalente a 10 cursos de pilotagem. Voando a uma média de 180 km por hora, isto significa uns 72 mil km percorridos (quase duas voltas completas na Terra). Com uma média de 10 aterrissagens por hora, o piloto agrícola realiza 4.000 aterrissagens em uma safra, algo que muitos pilotos levam toda uma vida para fazer. E eu poderia seguir por aí.

4.000 Aterrissagens, 4.000 Decisões

Todo voo agrícola tem três fases bem definidas: a decolagem, a aplicação e a aterrissagem. Seja qual  for o trabalho que esteja fazendo, sempre terá essas fases. Cada voo é diferente do anterior e do próximo. Nenhum é igual a outro.

A outra grande diferença das operações agrícolas é que não existem parâmetros tabulados, e cada decolagem implica uma decisão por parte do piloto. Ele deve levar em conta itens como configuração do avião, comprimento da pista, carga, altitude densidade e o mais importante, o juízo crítico do piloto.

Nós, pilotos agrícolas, somos tomadores de decisão; toda a operação depende de nossas decisões. Ou seja, nossa segurança, o resultado de nosso trabalho e a produtividade da empresa dependem do nosso desempenho.

Segmentar e Sequenciar

Qualquer voo que beire aos limites dos regulamentos agrega uma enorme pressão ao piloto. Enfrentar essa pressão externa, seja ela advinda de um cliente, ou do chefe, ou do orgulho pessoal do piloto, é um fator importante para aumentar a margem de segurança do voo.

A melhor forma de lidar com a pressão é segmentar e sequenciar nosso trabalho.

Voltando às três fases de um voo agrícola, devo colocar meu foco na fase em que me encontro no momento. Faz sentido eu me preocupar como vou encarar as passagens de pulverização se ainda não decolei? Ou pensar nas dificuldades que posso ter na aterrissagem, se tenho que cuidar da rede elétrica na cabeceira da lavoura?  A resposta é NÃO.

O autor Mark Manson fala que a vida é uma série interminável de problemas e diz: “não espere uma vida sem problemas. Isso não existe”.  E é verdade, até quando decidimos sair de férias temos que solucionar problemas.

Aplicado à aviação agrícola, isto seria: devo preocupar-me em resolver o problema da fase de voo na qual estou. Devo focar-me em solucionar o problema que tenho imediatamente à frente. E isto não significa que eu não possa ser proativo (característica essencial de todo bom piloto).

Tudo é uma sequência, desde que levamos a manete à frente para a decolagem até o arredondamento para o pouso, tudo é: determinação, ação, sequência e procedimentos, feitos de modo consciente.

A Síndrome do Dever Cumprido

Todos os especialistas em segurança aeronáutica, os técnicos em prevenção de acidentes, os militares e os pilotos conhecem o que se chama de “síndrome do dever cumprido”. Quando estamos finalizando uma tarefa, temos a tendência de reduzir a concentração e nosso foco de atenção. A maioria dos acidentes de aviação agrícola ocorrem nos últimos “tiros” de uma lavoura, quando começamos a relaxar.

Então, se em uma safra temos uma média de 4.000 decolagens e pousos, é certo que teremos 4.000 problemas e a mesma quantidade de decisões a tomar. Definitivamente, nos transformamos em uma máquina de resolver problemas .

Nosso Maior Orgulho

Nos dedicamos a uma profissão de muito risco e estresse. Muitas vezes vamos nos sentir pressionados, sozinhos e muito cansados. Tudo isso emocionalmente é bastante difícil para se gerenciar.

Há um antídoto para isso? Sim e não. Sua vida como piloto agrícola é diferente da vida do resto das pessoas, Seus amigos te convidam para um churrasco uma vez, duas e na terceira, porque você diz que não pode ir porque tem que voar no dia seguinte, já não te convidam mais.

Só se conhece a aviação quando se está dentro dela;  nem tudo tem o glamour de um filme. A aviação às vezes irá te tratar mal, e terás que apelar a teu valor como piloto e à sua integridade pessoal para fazer o certo mesmo quando ninguém está te vendo.

Os fatos demonstram que a aviação agrícola desempenha um papel INDISPENSÁVEL e INSUBSTITUÍVEL e nós, pilotos, somos a alma desse sistema.

Esse deve ser nosso maior orgulho; sem pilotos, não há aviação agrícola.

Como bons tomadores de decisão que somos, deveríamos decidir ter como o objetivo de todos os dias voltar sempre para casa. Nós, que somos pais, maridos, filhos e amigos, sempre temos alguém que nos espera em casa. Felizes e seguros voos neste 2024.

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