O BRASIL EM TONS DE CINZA
O período de estiagem de 2024 tem sido intenso e prolongado no Brasil. Os incêndios atingem quase 60 % do território nacional, afetando unidades de conservação e áreas de produção em 16 estados e no Distrito Federal, sendo considerado o período mais seco dos últimos 44 anos, segundo o CEMADEN.
Dos seis biomas brasileiros – Amazônia, Caatinga, Cerrado, Pantanal, Mata Atlântica e Pampa, o fogo é elemento que integra naturalmente o equilíbrio fisiológico do Cerrado, sendo que parte dos focos são originados por fatores naturais como descargas elétricas, combustão espontânea, atrito entre rochas e até pelo atrito da pelagem de animais com a mata seca, conforme estudos do Instituto de Biociências de Botucatu/SP.
É importante destacar que a estatística mundial atribui até 30% do aparecimento de focos de fogo a fatores naturais, os 70% restantes são de origem antrópica, por negligência ou intencional.
HISTÓRICO DA ATIVIDADE
Os primeiros relatos sobre o emprego de aeronaves dentro de um sistema de prevenção e combate ao fogo surgiram nos idos de 1919, nos estados do oeste americano – Califórnia, Oregon e Washington, quando o Serviço Florestal dos Estados Unidos – USFS empregou pequenos aviões para voos de patrulha e controle sobre extensas áreas florestadas que corriam risco de incêndios. Dentre outros aviões, encontrava-se disponível o biplano leve Curtiss JN-4D “Jenny”.
A história do combate aéreo aos incêndios no mundo é longa, altamente interessante e importante, haja vista a integração do conhecimento e habilidades entre os pilotos pioneiros e os especialistas em incêndios florestais.
Várias foram as tentativas malsucedidas de se usar aeronaves para combater o fogo, foi preciso encontrar o equilíbrio entre técnica e tecnologias.
As dificuldades de se lançar água e outros produtos ignífugos relacionavam-se ao fato de não existirem aviões e equipamentos projetados para esse fim. Eram aeronaves e equipamentos da Primeira Guerra Mundial, disponíveis a baixo custo, que foram sendo adaptados para outros usos que não o bélico, resultando num trabalho de baixa efetividade e de muito risco para os pilotos e combatentes em terra.
Os primeiros registros de testes são de 1930, no estado de Washington, quando um bombeiro experiente e um piloto local utilizaram um Ford Trimotor levando a bordo seis barris de madeira contendo água. Enquanto voavam a 90 mph, à 100 pés, o bombeiro empurrou os barris para fora da aeronave. Mesmo com resultados pouco encorajadores, este foi enfim o começo.
Existem muitos relatos históricos sobre as aeronaves e equipamentos adaptados que se sucederam com o objetivo de combater o fogo florestal com maior segurança. Entretanto, foi no último terço do século XX que, com a fabricação de aeronaves especialmente projetadas e equipadas, essa aviação se mostrou efetiva e indispensável nos sistemas de prevenção e combate aos incêndios florestais e rurais, expandindo-se em todos os continentes, inclusive na América do Sul. Eram aeronaves, multifuncionais, anfíbias ou não, com maior capacidade de carga, equipadas com comportas de maior abertura e com distintas regulagens, logística simples e menos custosa, fácil abastecimento de carga e combustível e, finalmente, operavam a partir de pistas que já compunham a malha aeroagrícola.
No Brasil, 2024 marca os 23 anos da aviação de combate aos incêndios, atividade que se estabeleceu graças ao empenho de um conjunto de pessoas, empresas privadas e órgãos públicos.
Os primeiros trabalhos ocorreram em 2001, em atendimento ao IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, na região da Chapada dos Guimarães, Serra das Araras e Pantanal, no estado do Mato Grosso e, em Bonito, no estado do Mato Grosso do Sul. Neste mesmo ano, o segmento incipiente foi duramente marcado pelo único acidente fatal na atividade em nosso país. Este doloroso episódio foi um alerta e despertou em todos a busca pela capacitação dos pilotos e demais profissionais envolvidos nesse tipo de operação.
Em 2003, durante o Congresso Nacional de Tecnologia Aeroagrícola, o Ministro da Agricultura, Dr. Roberto Rodrigues, declarou seu total apoio ao projeto de criação do Sistema Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios em Campos e Florestas. Nesse período, surgiram contratos de prestação de serviços em modelo público-privado, com destaque ao IEF Instituto Estadual de Florestas, no estado de Minas Gerais – PREVINCÊNDIO.
No Brasil, a capacitação de pilotos agrícolas para a atividade teve início em 2006, através do Acordo de Cooperação entre o Ministério da Agricultura – MAPA, o Núcleo de Tecnologia Aeroagrícola – NTA e a Fundação de Estudos e Pesquisas Agrícolas e Florestais – FEPAF/UNESP-Botucatu/SP. Foram cinco cursos brasileiros que capacitaram mais de cem pilotos. A partir do encerramento desse Acordo, as empresas e operadores aeroagrícolas privados buscaram capacitar seus pilotos para atenderem à crescente demanda pelo serviço.
Hoje, o Brasil possui mais de 500 pilotos capacitados na atividade.
PANORAMA SITUACIONAL
Inicialmente é preciso destacar que nenhum grande incêndio começou grande. Todos os incêndios, por maior que estejam, começaram pequenos, com baixa intensidade e pouca ou nenhuma propagação.
O combate aéreo aos incêndios florestais e rurais é uma atividade complexa que se integra a outros segmentos, todos atuando em conjunto, com um objetivo em comum e dentro de um cenário crítico de emergência ambiental.
Aspectos como clima reinante, localização topográfica do foco inicial, tipo de vegetação (espécies predominantes, estado fenológico, distribuição no terreno) permitem prever o comportamento do fogo.
Os tempos de detecção, acionamento e chegada ao fogo, as técnicas e estratégias de ataque empregadas e a competência das equipes envolvidas (terra e ar) serão determinantes do sucesso da operação de combate.
As aeronaves (asa fixa e rotativa) são ferramentas versáteis que, em função de sua homologação, podem ser empregadas em patrulhamento, combate ao fogo, resgate, transporte de pessoas, cargas e ainda nas ações de coordenação e fiscalização.
Na maioria das vezes as ações transcorrem em zona rural, mas também podem ocorrer em zonas de interface. A designação da pista mais próxima em condições operacionais irá conferir mais efetividade e eficiência aos combates.
Uma operação na zona rural é mais fácil de ser coordenada, visto que as aeronaves operam em áreas de reduzido tráfego aéreo e a partir de pistas particulares da malha aeroagrícola. Entretanto, algumas situações nos levam a operar desde aeródromos controlados.
PRINCIPAIS ENTRAVES E POSSÍVEIS SOLUÇÕES
Como em qualquer outra atividade, o início é marcado por dificuldades que devem ser analisadas e solucionadas. Iniciamos muito tempo depois de outros países, mas isso não é um problema, pois podemos contar com a valiosa experiência vivenciada por eles e não cometeremos os mesmos erros do passado.
O combate aos incêndios florestais é uma operação de guerra a favor da vida. Reúne equipes de terra e de ar, de organizações públicas e privadas, civis e militares em um trabalho conjunto e integrado em torno de um objetivo comum – controlar o incêndio no menor tempo possível, com o menor dano possível, mas acima de tudo com segurança.
Coordenação
Um dos principais entraves é relacionado à coordenação da operação. A decisão de acionar as aeronaves tem sido tardia. Contar com aeronaves numa estratégia de primeiro ataque significa empregar uma ferramenta eficaz no controle de um foco inicial de fogo, enquanto é pequeno, de baixa intensidade e nenhuma propagação. A integração das forças de combate aérea e terrestre traz resultados mais efetivos, rápidos e mais seguros, além de minimizar os danos ecológicos, econômicos, sociais e de saúde pública advindos de um incêndio.
Entretanto, nem sempre os envolvidos na coordenação dos trabalhos estão preparados para gerir a AVI – Área de Voo do Incêndio e fazer a integração das forças aéreas e terrestres numa estratégia segura e eficaz de combate ao fogo.
As questões relacionadas à comunicação são indispensáveis àqueles que desempenham a coordenação de um sinistro. A ausência ou precariedade do sistema de comunicação, aliada à falta de uma padronização da linguagem empregada entre as equipes terra-ar, ar-ar tem trazido problemas de entendimento, congestionamento da frequência operacional e dificultado as ações implementadas.
Logo, é necessário que haja coordenadores que dominem as técnicas de combate, que saibam gerir a AVI com segurança, que tenham fluência em comunicação por rádio e utilizem uma fraseologia padrão, compreendida e praticada por todos os envolvidos no teatro de operações.
Instrumentos e Equipamentos
São necessárias aeronaves agrícolas de maior capacidade de carga, acima de 1.800 litros, equipadas com uma comporta específica, de maior abertura e que permita regulagens variadas, possibilitando seu emprego em distintas situações.
Outra questão imprescindível é a instalação e o bom desempenho do equipamento de radiocomunicação em todas as aeronaves envolvidas, sem o quê torna-se impraticável a coordenação dos lançamentos e a realização da operação dentro de um padrão de segurança aceitável.
Alguns contratos podem exigir que a empresa prestadora de serviços se responsabilize pelo fornecimento de água para as operações. Isso implica na aquisição de reservatórios portáteis, motobombas, sistema de adução e até mesmo na contratação de caminhões tanques quando da impossibilidade de acesso a cursos d’água nas proximidades da base de operações.
Produtos Ignífugos de curta e longa duração
Os ignífugos são produtos que por sua ação física ou química inibem ou retardam a propagação do fogo. Melhoram a efetividade da água (curta duração) e nos permitem empregar a técnica do combate indireto (longa duração), ampliando as estratégias e melhorando a eficácia dos combates.
O Brasil precisa avançar nesse tema, concluir os estudos já iniciados há décadas e regulamentar seu uso no país.
Contratos
Os contratos governamentais, em sua maioria, preveem apenas o pagamento da hora voada no acionamento, não têm a garantia de um mínimo de horas contratadas para um dado período e região. Por outro lado, aeronaves, equipamentos, pilotos e equipes de apoio em terra deverão estar em local determinado pelo contratante em até 72 horas (pode variar) após o acionamento, agregando dificuldades e custos extras para a prestadora do serviço.
Uma das implicações advindas desse modelo contratual é que muitos operadores aeroagrícolas perderam o interesse de investir nessa atividade porque não têm perspectivas seguras do retorno financeiro do investimento feito.
Outra questão decorrente é o encarecimento do valor cobrado pela hora de voo em combate, numa tentativa de se amortizar, total ou parcialmente, os investimentos necessários à realização da atividade, como: adquirir aeronaves de maior capacidade de carga e a comporta específica, ter disponível reservatórios portáteis, equipar a aeronave com sistema de radiocomunicação e transponder, capacitar os pilotos e a equipe de apoio em terra, arcar com o aumento do valor do seguro e com taxas, tarifas e impostos inerentes ao desempenho das operações de combate aos incêndios.
Em um ciclo vicioso, o aumento anual da dotação orçamentária não é proporcional ao aumento do valor cobrado pela hora de voo em combate. Assim, o contratante se vê cada vez mais restringido de usar essa tecnologia e, na intenção de melhor empregar os recursos de que dispõe, frequentemente opta pelo enfrentamento inicial do fogo somente com os meios terrestres. O acionamento das aeronaves é feito tardiamente, quando já se perdeu a oportunidade de controlar o fogo em seu estágio inicial, restando ao contratante partir para uma estratégia de ataque ampliado, em que serão necessários todos os recursos de que dispõe para tentar extinguir um incêndio de grandes proporções.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Prevenir é mais fácil, mais barato, mais efetivo e mais seguro do que se combater. Quando a prevenção falha, entram as equipes de combate.
Dentro desse prisma concluo que o Brasil carece de um Sistema de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais e Rurais que empregue de forma competente os recursos de que dispõe.
As questões aqui levantadas expressam a minha visão e as minhas sugestões para que possamos melhorar nosso desempenho e nos tornarmos referência em combate aéreo aos incêndios florestais e rurais.