“Isso é potência de Pawnee fazendo um trabalho de Ag Husky!” Essa foi a impressão de Bill Lavender, após seu voo de avaliação no Gippsland GA200 com motor Lycoming de 250 HP e hélice de passo fixo, com seu hopper de 800 litros cheio até a tampa, tanques de combustível cheios e o então supervisor de produção da Gippsland, David Wheatland, ao seu lado no na cabine de dois lugares. Isso foi em 1995, na Austrália, onde este avião era fabricado pela então Gippsland Aeronautics. Considere que na época Bill ainda era um piloto agrícola na ativa, mas provavelmente já tinha voado em mais modelos de aviões agrícolas do que qualquer outro.
“O GA200 não teve qualquer dificuldade para decolar e voar até uma área com esta carga. Eu simplesmente não consegui acreditar. Embora estivesse frio, ventava bastante. Sei que quando a altitude densidade sobe, o desempenho do avião cai. Mas neste avião, teria de cair muito para impedir um piloto de voar com carga completa.” E esse era o segundo voo de Bill no avião! No primeiro ele tinha voado com 560 litros de água no hopper, para fazer curvas de grande inclinação a 800 pés de altura, dado que o teto estava baixo.
“Era difícil de acreditar que o avião tinha a carga completa de um Pawnee. David insistiu que eu subisse a 800 pés e fizesse curvas de grande inclinação, e até mesmo estóis completos.” Bill dispensou as perdas, mas apertou as curvas até o manche começar a tremer, com David Wheatland dizendo, “Sem estresse, isso é pelo fluxo de ar turbilhonado sobre a raiz das asas, as asas ainda estão gerando sustentação. Este avião é muito dócil.”
Quatro anos depois, durante o Congresso Mercosul de Aviação Agrícola de 1999, em Foz do Iguaçu, no aeródromo da Estância Hércules, foi a minha vez de ficar impressionado com este pequeno grande avião, embora eu não tivesse tido a chance de voá-lo com carga completa (nem a experiência de Bill para julgar seu desempenho).
Estas memórias me voltaram quando o empresário João Gonçalves Júnior, da Precisão/Jaíba Aviação Agrícola, me contou que tinha começado sua empresa com “um Cessna Ag Truck e dois Gippsland GA200s “. Felizmente, ao invés de memórias fragmentadas, eu tinha os arquivos de AgAir Update para pesquisar este artigo e melhor ainda, tive o depoimento de Emílio Ricardo Pires. Um piloto agrícola e anteriormente sócio da Precisão Aeroagrícola, ele é um dos certamente poucos pilotos que voaram operacionalmente ambas as versões do Fatman – o GA200 com motor de 250 HP e passo fixo, e o GA200C com 300 HP e hélice de passo variável.
Claramente inspirado pelo Piper Pawnee, o GA200 foi desenvolvido entre 1985 e 1991 com base em informações de operadores australianos. Ele foi apelidado de “Fatman” (“Gordo”) devido à sua fuselagem alargada para acomodar o hopper maior e um segundo assento lado a lado no cockpit, para um técnico ou piloto em treinamento, caso o duplo comando opcional estivesse instalado. Ele também tinha outras importantes diferenças de projeto em relação ao Pawnee, para melhorar seu desempenho, segurança e operacionalidade.
Era um avião pequeno (envergadura de 11,98 m, comprimento de 7,84 m), com técnicas de engenharia estrutural comprovadas, tais como asas com montantes, e com moderna aerodinâmica, a qual incluía um profundor com perfil aerofólico e uma fuselagem que gerava sustentação em grandes ângulos de ataque. A estrutura da fuselagem era feita inteiramente em tubos de aço soldados, e recoberta em alumínio até as laterais do cockpit, sendo entelada daí para trás. As asas também eram totalmente em alumínio, para maior resistência à movimentação do pessoal de carregamento. Facões no pára-brisa, trens de pouso e um cabo defletor davam segurança quanto a colisões com fios. O bordo de ataque das asas era formado por chapas idênticas, assim como os flapes e ailerons de ambas as asas, que eram idênticos e intercambiáveis. As asas com montantes resultavam em baixo peso (apenas 770 kg vazio) mas com robustez, com um peso máximo de decolagem de 1.700 kg em operações aeroagrícolas! Os trens de pouso tinham amortecedores tipo sandow e freios a disco bastante eficientes.
O GA200 tinha um sistema de combustível extremamente seguro, com capacidade total de 200 litros. Eram dois tanques nas asas, alimentando um tanque intermediário na fuselagem através de uma bomba mecânica (com bomba elétrica de backup), o qual por sua vez alimentava o carburador por gravidade. Caso a transferência falhasse, seja por alguma pane ou por “distração” do piloto, o tanque intermediário ainda permitia cerca de 15 minutos de voo após uma lâmpada de alerta acender, o suficiente para se voltar para uma pista na maior parte das operações. Para ainda maior segurança, o tanque intermediário tinha um bóia indicadora que podia ser vista através de um vidro na carenagem do motor, caso a lâmpada falhasse. Não havia seletora, apenas uma válvula de corte para emergências. A quantidade de combustível nos tanques podia ser vista através de pequenos indicadores em janelas de vidros nas asas.
Bill Lavender testemunhou a segurança deste sistema pessoalmente. Antes de seu primeiro voo, todo o combustível tinha sido retirado do avião para uma aferição de peso e balanceamento. Isso causou a formação de uma bolha de ar no tanque, o que fez com que a bomba de combustível parasse de funcionar. O combustível no tanque intermediário permitiu seu retorno seguro à pista.
Também fiquei impressionado com o sistema agrícola do GA200; seu hopper tinha duas tampas, uma para aplicações de sólidos e outra para aplicações de líquidos. Esta incorporava o quebra-ondas do hopper e fechava por pressão, com uma junta de borracha. Como o piloto tinha plena visão do conteúdo do hopper de dentro da cabine, não havia necessidade de se abrir o hopper para checar a carga. Ao aplicar produtos sólidos, esta tampa e seu quebra-ondas eram removidos, e o hopper fechado por uma tampa de acrílico transparente. Esta podia ser aberta pelo piloto dentro do avião, quando o funil de carregamento se aproximava, sem necessidade de um técnico subir na asa. Com o carregamento pronto, bastava o piloto acelerar o motor e o vento da hélice fechava a tampa.
O avião que avaliei tinha sido trazido para o Brasil por uma associação entre uma empresa chamada Pontual Aeroagrícola, do piloto e operador Gianluca Possamai, e a J&C Entreprises (que representava a Gippsland nos EUA na época). Ele tinha uma barra aerodinâmica rebaixada e bicos CP Nozzle, além de pontas de asa de desenho exclusivo para melhor deposição, ao qual a Gippsland chegou depois de muitos anos de experiências.
Outra característica interessante deste avião era a sua carenagem de motor, a qual incluía três saídas de ar em formato de venturi, as quais além de melhorar a refrigeração, também direcionavam o ar que saía para a raiz das asas, aumentando a sustentação. O modelo GA200C, com motor de 300 HP, tinha uma hélice de passo variável e um hopper ainda maior, de 1.060 litros.
Como realmente desempenhava o Fatman? Apenas três Fatmans foram importados para o Brasil, um GA200 e dois GA200C. Emílio Ricardo Pires, que voou ambas as versões, nos dá suas impressões:
“Na minha opinião, o GA200 é um Pawnee PA-25 bem melhorado, com uma modificação na ponta das asas e a largura do cockpit para aumentar o hopper, que acabou deixando ele com dois lugares. Uma performance de voo muito boa. O 250, no caso com passo fixo, ele é um avião relativamente mais lento, como o Pawnee com passo fixo, só que fazia uma decolagem com 750 litros a 3 mil pés (ASL), normalmente a gente operava com bastante combustível na época, com gasolina, mais leve que o etanol de hoje. Os ‘balões’ eram muito ágeis e a faixa de deposição, homogênea. Em relação ao GA200C, com motor 300 com passo variável, hopper de 1.000 litros, a operação normal era com 800 ou 900 litros, quase como um Ipanema 203. A diferença (entre os modelos) estava basicamente no berço e motor. A decolagem também com boa eficiência, a velocidade dele já era bem melhor, com 112-115 milhas, a gente sempre operando a 3.000 mil pés (acima do nível do mar), com uma faixa de deposição muito boa, como é do Pawnee. Então na minha opinião pegaram um Pawnee com todas as suas qualidades e deram um upgrade sensato nele. Um avião leve, com manutenção simples, motor Lycoming.”
Infelizmente, nenhum destes três Fatmans ainda voa no Brasil, de acordo com o Registro Aeronáutico Brasileiro. Emílio cita duas razões principais para isso: a falta de peças de reposição para a célula, com o fim de sua produção, e a inexistência de um CST para uso de etanol combustível. O Brasil é um caso único do mundo, onde o uso de etanol combustível deu uma nova vida aos aviões agrícolas a pistão, pelo seu baixo custo. Com etanol, um avião a pistão pode competir com os turbinas nas áreas menores; não é à toa que tantas empresas possuem frotas mistas de aviões a turbina e a pistão, colocando os últimos em áreas menores.
Bom desempenho, custo acessível, simples e capaz de ser usado como avião de treinamento; como um avião tão bom não deu certo? Além da ascensão dos aviões da turbina, o isolamento geográfico da Austrália (e da Nova Zelândia) provavelmente foi um fator, ao dificultar as entregas e o suporte ao cliente nos mercados maiores das Américas. Outros aviões construídos nestes países, como o Transavia PL-12 Airtruk e o Pacific Aerospace Corporation Fletcher/Cresco, tiveram um pouco mais de sucesso mas acabaram com o mesmo destino. De acordo com um artigo da Wikipédia, apenas 50 Fatmans – 28 dos quais exportados para a Nova Zelândia, China, Estados Unidos, Canadá e África do Sul, além do Brasil – foram construídos até o final dos anos 1990. Após isso a empresa se dedicou a produção de aviões monomotores de passageiros até 2020, quando aparentemente cessou suas operações.