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O Risco Não Tem Memória

Não abra a porta para o erro, a segurança não tem atalhos. 

Estava sentado na cabine, esperando que minha equipe de terra abastecesse meu avião. Neste momento uma caminhonete chegou freando forte, chegando a arrastar as rodas. O dono saltou da mesma e veio correndo até mim. Tinha os olhos vermelhos (para não dizer cheios de lágrimas) e com um mapa de área na mão me disse, “Por favor, salve minha lavoura. Pago o que quiser”.

Esta imagem reflete que pilotos, apoio de terra e principalmente o dono de uma empresa aeroagrícola, não podemos ter desculpas. Somos vendedores de serviços, temos a confiança que nos deposita um produtor, muitas vezes somos sua última esperança e podemos ser a diferença entre que este perca sua safra ou que a salvemos. Por tudo isso e muito mais, temos que cumprir com o serviço.

Porém, não ter desculpas tão pouco implica aceitar tudo e dizer sim para todos. Nossos limites se baseiam em protocolos e procedimentos previamente definidos.

Os procedimentos, os protocolos e a normativa estão inscritos com sangue.

Parece uma afirmação um pouco exagerada ou de filme. Porém é verdadeira. Na aviação se aprende de duas maneiras: pela experiência dos próprios erros ou aprendendo com os erros alheios. Para isso existem as conversas de hangar, os mentores, uma infinidade de vídeos agora e também podem servir artigos como este.

Quando falamos de escrever a história com sangue, nos referimos à própria aviação. Quantos erros, acidentes e mortes custam a aprendizagem. Todas estas falhas são incorporadas nos procedimentos para buscar uma aviação mais segura.

O registro de eventos 

O Uruguai tem como um dos requisitos para certificação de empresas aeroagrícolas, o sistema SMS (Safety Management System, Sistema de Gerenciamento de Segurança em sua sigla em inglês) e mais concretamente o registro de eventos. O registro de eventos é voluntário e não é punitivo. Isto quer dizer que algum evento que aconteça na empresa e que saia das BPA (Boas Práticas de Aplicação) deve ser documentado voluntariamente. As outras palavras-chaves são “não é punitivo”. Se admito que errei, o que me acontecerá?  Devemos criar em nossas organizações  o ambiente de colaboração e adotar modelos de melhoria contínua para que todos possamos reconhecer nossos erros e aprender com eles. Os eventos a registrar podem variar desde simples a graves, dependendo fundamentalmente de sua incidência em relação à segurança

O risco não tem memória, não se vitimize e não “conviva com o erro” 

O coronel da USAF Mike Mullane, (ex-astronauta da NASA e participante no vídeo Turn Smart da Air Tractor – https://www.youtube.com/watch?v=gKP41xZQQgU&t=1834s), fala sobre os perigos da normalização do desvio dos procedimentos e como se relacionam estes com a aviação agrícola. Me permiti tomar três conceitos fundamentais: não se vitimizar, saber que o risco não tem memória e o mais importante, não ter o costume de transgredir os limites e esperar sempre sair ileso. 

Se aperto o meu “balão” por crer que vou terminar um serviço mais rápido, se cedo às pressões dos produtores para voar em qualquer condição, se me acostumo a voar com um sistema em pane e convivo com isso, todas essas situações tem um nome técnico impressionante: “normalização do desvio de procedimentos”. Ou nas palavras mais simples como eu a chamo, “conviver com o erro”. O risco não tem memória, posso conviver com o erro uma, duas ou dez vezes, Possivelmente na décima primeira vez me acidentarei. Porque? Porque o risco não tem memória, as situações anormais são exatamente isso, anormais. E torná-las cotidianas não diminuem seu potencial catastrófico, pelo contrário o aumenta. E logo após o acidente, vem a pior parte, conviver com esse erro e assumir suas consequências. E muitos com quem isso acontece se vitimizam: “Como isso foi acontecer logo comigo, que tenho milhares de horas, fiz assim toda a minha vida”, etc.

Dê a si mesmo uma margem para lidar com o inesperado 

Falo por mim, mas certamente isto acontece com muitos colegas. Quantas vezes sentimos que temos que parar, refletir e nos perguntarmos, porque estou fazendo isso?  O que justifica operarmos de forma insegura?  O que ganho convivendo com o erro?  A quem quero agradar?  A diferença entre os animais e os humanos é o que os especialistas chamam de autoconsciência. É esta pequena voz interior que nos diz, ”espera, há algo mal, não deves continuar por aí”. A outra opção é seguir por instinto, como fazem os animais.

É por isso que, independente da forma que se adote, todos os pilotos deveriam receber alguma capacitação sobre como lidar com pressão externa, e todos deveríamos conhecer as políticas da empresa para a qual trabalhamos com respeito às pressões externas. Certamente, há situações nas quais as circunstâncias nos obrigam a ceder um pouco e passarmos do limite (não dizê-lo seria hipocrisia), porém isto não deve converter-se em algo normal.

Sempre devemos contar com a falha, o erro ou com o inesperado, e nos darmos uma margem para não termos que lamentar nossa falta de previsão. Um bom exercício é ir bastante “à frente” do avião. Quero dizer, imaginar com o que vou me deparar, que ações corretivas tomar e focar-me na fase de voo na qual me encontro.

Os pilotos do Concorde (o avião comercial mais complexo de se voar do mundo) tinham que ir 300 km à frente do avião, para que nada os surpreendesse. Não vou pedir que atuemos como pilotos de Concorde, porém sim, podemos ser proativos, nos darmos um tempo para pensar e avaliar, gerar nosso próprio registro de eventos e o mais importante, não conviver com o erro.

O objetivo é não ter que enfrentar a pior das sensações que pode ter um piloto, a sensação de quebrar um avião, isso se ele sobreviver para se arrepender.

Por que o que está dentro de nosso círculo de influência devemos controlar; não temos desculpas por não ter consertado o que estava quebrado, não ter substituído um procedimento nem por não saber quando parar.

Por mais que um produtor se aproxime de seu avião chorando e te peça que salve a sua lavoura, às vezes temos que saber dizer não. Se abrirmos a porta para a “normalização do desvio de procedimentos”, devemos saber que “o risco não tem memória”.

Eu apreciaria sua opinião a respeito de meus artigos – [email protected]

Martin da Costa Porto é um piloto agrícola e instrutor de voo agrícola no Uruguai. Ele tem mais de 25 anos e 12.000 horas de experiência aeroagrícola, além de 3.000 horas de instrução de voo. Atualmente, ele opera sua própria empresa aeroagrícola no Uruguai.
Escaneie este QR Code para assistir ao vídeo “Turn Smart” em seu dispositivo.

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